Momento de criação de um paradigma sobre a identidade nacional (Resende Reference Resende2000), a percepção da produção cultural brasileira da Primeira República é marcada pela interpretação do modernismo paulista que, nos anos 1920, se volta contra os autores que constituíam a elite intelectual brasileira no Rio de Janeiro. Os modernistas e seus herdeiros na universidade (Pontes Reference Pontes1998) censuram em seus antecessores a adesão ao projeto modernizador cosmopolita dos anos 1890 e 1900, assim como a submissão aos gostos de uma burguesia francófila vista como frívola. Consequentemente, e apesar das desconstruções acadêmicas pelas quais passou o modernismo (Bomeny Reference Bomeny1994; Gomes Reference Gomes1999; Lafetá Reference Lafetá1974; Lago Reference Lago2010; Velloso Reference Velloso1996), para uma história cultural onde a questão da nacionalidade é central (Napolitano Reference Napolitano2019), o “pré-modernismo” é julgado como um período “estéril em termos nacionais” (Needell Reference Needell1987, 232), podendo passar a ideia de um “vazio cultural” (Velloso Reference Velloso2010, 22) nos manuais escolares.
A questão em torno do par “nacionalismo” e “universalismo” não é novidade nos estudos latino-americanos. Em geral, prevalece uma visão que aponta uma oposição ou uma incongruência entre os dois termos, que se traduz pelas ideias de “dilema” (Queiroz Reference Queiroz2021) ou “paradoxo” (Perrone-Moisés Reference Perrone-Moisés1997). Salienta-se a situação de “dependência cultural” (Cândido Reference Cândido1989, 148) e a origem das literaturas latino-americanas, um “galho secundário” (Cândido Reference Cândido2000, 9) da literatura metropolitana. Insiste-se na permanência da “condição colonial”, criando um terreno onde “convivem e conflitam […] o prestígio dos modelos metropolitanos e a procura tateante de uma identidade originária e original” (Bosi Reference Bosi1995, 34). Desta situação, deriva uma série de teorias que tentam dar conta das culturas da América Latina. Fala-se em “hibridação cultural” entre a modernidade e as tradições locais (Canclini Reference Canclini1990) ou em “contaminação” (Santiago Reference Santiago2000, 16). Sublinha-se a necessidade de “pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal” (Campos Reference Campos1992, 32). Em suma, parte-se da condição “periférica”, “dominada” ou “dependente” dos países no plano internacional e é postulada uma discordância entre a cultura europeia importada e a realidade local, o que geraria, no encontro entre as duas, uma cultura mais ou menos original e uma modernidade que nunca atinge sua plenitude (Sarlo Reference Sarlo1988; Schwarz Reference Schwarz1977).
No entanto, pode-se questionar o quanto a crítica cultural latino-americana é tributária de uma perspectiva que faz uma ligação direta entre a situação política e econômica da nação e a produção cultural, como se esta fosse determinada pela situação pós-colonial e pela posição subalterna da região no plano internacional. Isso quando os trabalhos não se inserem em debates mais genéricos, bem além do campo cultural, como a ideia de “transculturação narrativa” de Ángel Rama (Reference Rama2008), elaborada no contexto da discussão sobre a Teoria da Dependência dos anos 1970.
Este artigo, sem querer invalidar os clássicos do pensamento latino-americano, procura mostrar que um olhar atento para como a questão se apresenta aos artistas e literatos enquanto artistas e literatos —quer dizer, como produtores de cultura— pode ajudar a entender as escolhas estéticas feitas em termos de nacionalismo ou cosmopolitismo. Se a “lei da evolução” da “vida espiritual” latino-americana é regida “pela dialética do localismo e do cosmopolitismo,” em que prevalece “ora a afirmação premeditada […] do nacionalismo literário, […] ora o declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus” (Cândido Reference Cândido2014, 117), deve-se questionar as razões que levam os artistas a escolher um ou outro lado dessa dicotomia. Esta escolha não é determinada por um “contexto” genérico, mas na configuração do campo literário. “Nacionalismo” ou “cosmopolitismo” devem ser entendidos como tomadas de posição em relação a algo que se encontra neste campo, que são feitas em função das trajetórias de vida e profissional dos atores envolvidos. Se tal escolha tem evidentemente um fundo político, é necessário questionar o grau de autonomia do campo literário frente ao campo político, ao invés de estabelecer uma relação de determinação direta daquele por este.
Isso não quer dizer que escritores e artistas não estejam sujeitos a constrangimentos e sejam colocados diante de impasses em função da posição do país no espaço internacional. No entanto, os desafios são antes artísticos e a ordem internacional para as artes não coincide com a ordem econômica ou política, apesar das homologias.Footnote 1 Pode-se pensar a partir da ideia de um espaço artístico mundial unificado, aquilo que Pascale Casanova (Reference Casanova2008) chama de “República Mundial das Letras”, que é construído, no entanto, sobre espaços artísticos nacionais e onde os artistas compartilham a crença na universalidade da obra de arte.Footnote 2 Trata-se de um espaço que apresenta uma estrutura interna hierárquica, dado que os espaços nacionais são diferentemente dotados simbólica e tecnicamente, o que significa que o artista entra no “jogo” internacional já dotado de um certo capital simbólico pré-determinado pelo prestígio de seu país e de sua língua, assim como de um conjunto mais ou menos vasto de soluções estéticas, narrativas ou formais legadas por seus antecessores.
As tomadas de posição dos atores em termos de “nacionalismo” ou “universalismo” devem ser entendidas, portanto, em função de uma relação complexa entre a configuração do campo local e a posição da nação no espaço artístico internacional. Essas tomadas de posição devem ser entendidas como estratégias de legitimação de grupos que procuram um lugar no espaço artístico, tanto mundial como nacional. As artes da Primeira República brasileira representam um estudo de caso interessante que pode oferecer pistas para outras lugares e outros momentos, pois nela se conjugam mudanças políticas (proclamação da República em 1889; golpe de estado em 1930 com a posterior ascensão de um regime nacionalista) e culturais (ascensão de um grupo de músicos e literatos que adere à modernidade cosmopolita da época, seguida por sua crítica pelo modernismo nos anos 1920) em que o par nacionalismo/internacionalismo é central, o que permite questionar a autonomia relativa do campo literário frente ao político.
Ao estudo do campo literário, associamos a música. Os dois campos guardam relações bastante estreitas durante o período estudado. Músicos e literatos colaboram no teatro e se unem em projetos diversos de modernização das artes brasileiras, como no caso do Centro Artístico (Carvalho Reference Carvalho2009). Eles aparecem juntos em momentos altamente simbólicos do regime republicano, como a Exposição Nacional de 1908, quando eles compartilham o mesmo edifício, e a inauguração do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1909, além da Semana de Arte Moderna de 1922. As duas artes também foram alvo de reflexões comuns, sendo Mário de Andrade uma figura central tanto da literatura como da musicologia brasileiras. Enfim, a institucionalização precoce da música, com a criação do Conservatório Imperial (1848) e sua substituição pelo Instituto Nacional de Música após a Proclamação da República, dá visibilidade àqueles que ocupam as posições dominantes e dominadas no campo musical. Tudo isso faz da música um excelente estudo de caso para analisar as dinâmicas culturais da época.
Se outros estudos inserem o modernismo em uma reflexão mais antiga (Jardim Reference Jardim1978), nós queremos mostrar que, ao invés de haver uma oposição entre o modernismo e a geração anterior, os dois momentos representam um mesmo processo de modernização das artes brasileiras, no sentido de um processo histórico de autonomização de um campo de atividade. Obviamente que não devemos supor uma evolução em direção à autonomia como aquela descrita por Bourdieu (Reference Bourdieu1992) para a França. A estreiteza de um público consumidor no Brasil fará com que os campos artísticos fiquem mais tempo sob a dependência do Estado, seja como financiador, seja como “público vicariante” (Cândido Reference Cândido2014, 94) e instância de consagração. Além disso, a posição excêntrica do espaço nacional na República Mundial das Letras faz da conquista da autonomia nacional uma questão central e obriga os atores a se submeterem por mais tempo a um projeto nacional —uma questão não artística, portanto— como forma de combater a dominação estrangeira. Somente superada esta, seria possível imaginar a ideia de “arte pela arte” ou uma estética da “arte pura,” manifestações, segundo o esquema de Bourdieu, de um subcampo autônomo que marca a nascimento do “escritor moderno professional” que tem como única régua de consagração as regras da sua arte.Footnote 3 No entanto, parece evidente que se caminha para a constituição de um mercado relativamente autônomo, onde a oferta de bens culturais não é mais dependente unicamente da demanda ideológica do Estado, processo cujo símbolo é a aparição dos primeiros romancistas profissionais na segunda metade dos anos 1930 (Miceli Reference Miceli1979, 69–128). Isto também aponta para a especialização do trabalho intelectual, cuja aparição da figura do crítico especializado (Pontes Reference Pontes1998) é outra dimensão. Todos esses elementos formam as condições para a emergência de um campo autônomo.
É neste longo processo de modernização que devem ser incluídas as artes da Primeira República. Trata-se de uma evolução gradual, entravada por limites estruturais particulares ao desenvolvimento social e econômico brasileiro, e não linear,Footnote 4 que vai produzir uma modernidade que talvez chegue atrasada e seja incompleta, para utilizar termos frequentes quando se discute a modernidade na América Latina. É este processo que procuramos mostrar pela análise da biografia e dos discursos dos atores da época, expressa em romances, jornais, cartas e textos teóricos.
A argumentação está dividida em três partes. Começamos na última década do Império, quando uma nova geração de escritores, marginalizados dentro da economia de favores imperial, cria uma identidade do homem de letras alternativa ao escritor orgânica romântico se apoiando na imprensa e no mercado editorial em expansão. Esses escritores serão consagrados na Primeira República, fundando uma nova ética da prática literária que encontra sua melhor expressão na Academia Brasileira de Letras (ABL). Na segunda parte, será mostrado que a evolução da música guarda numerosas semelhanças com o desenvolvimento do campo literário: desenvolvimento de um mercado que permite a emergência de um polo relativamente autônomo frente ao Estado na última década do Império e criação de uma nova estrutura de poder na República, com a fundação do Instituto Nacional de Música. Finalmente, esses desenvolvimentos colocaram as bases e os termos do debate sobre os quais os modernistas construirão um projeto de emancipação nacional.
A geração boêmia contra o Império
Segundo Sébastien Rozeaux (Reference Rozeaux2012, 319–332), o Segundo Reinado (1840–1889) é um período de transição entre o que autor chama de “Antigo Regime literário”, que tinha por base o mecenato imperial, e uma economia literária que se faz segundo as regras da oferta e da demanda. Ao mesmo tempo em que o modelo do escritor orgânico é desconstruído por um contingente cada vez maior de novos escritores cujas ambições não podem mais ser satisfeitas pelos favores imperiais, o desenvolvimento da edição e do jornalismo oferecem novas possibilidades de consagração e permitem o aparecimento de representações alternativas da figura do homem de letras. Este processo tem consequências políticas: não somente o campo literário pode reivindicar maior autonomia com o aparecimento de um grupo de literatos afastado do poder imperial, mas alguns escritores aproveitam a quebra do consenso em torno da Monarquia para se afirmarem no espaço público.
Particularmente engajados no debate público (Sevcenko Reference Sevcenko1995, 78–86), a geração dita boemia constitui um grupo consciente de sua identidade coletiva, como lembra Pardal Mallet:
Nós fomos um grupo principalmente solidário pela amizade, divididos embora, por essa eterna questão de arte, […] nunca faltamos ao apelo do interesse coletivo, […] o Bilac, o Pompeia, o Neto, o Guimarães, o Alcindo e eu, quase todos da mesma idade, nascidos entre os anos de 63 e 65, reunidos pela convivência acadêmica, bastante certos de nós mesmos para aceitar a camaradagem dos veteranos—Luís Murat, Paula Nei, Aluísio Azevedo, Emílio Rouède e Artur Azevedo, bastante fortes para fazer de todo esse pessoal uma só família. (apud Pontes Reference Pontes1935, 251)
Esta união foi possível, apesar das diferenças estéticas, graças a uma experiência comum e dois militantismo complementares: no plano literário, a luta para viver da literatura; no plano político, a modernização do país, que se traduz pelo fim da escravidão e pela República.
As experiências deste grupo serviram de inspiração para o romance de caráter autobiográfico A Conquista (1899), de Coelho Neto. A obra conta os anos entre os primeiros passos do autor como escritor e a Abolição da Escravidão (1888). Este evento é “a conquista” dos homens de letras, vivido como a vitória do “talento”, como diz o personagem Luiz Moraes, representação do escritor Luis Murat: “Que vitória…! A conquista do talento, hem? Decididamente não há arma como esta!—e empunhou uma caneta com orgulho” (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 259–260).
O romance começa com o entusiasmo do jovem Anselmo, pseudônimo do próprio Coelho Neto, que se dirige à casa de Ruy Vaz (Aluísio Azevedo), que ele havia conhecido dias antes. Mas Anselmo tem uma decepção chegando ao seu destino: ele, que imaginava seu ídolo em um templo, com tapeçarias de Gobelins nas paredes, “telas de artistas célebres em molduras sóbrias; bronzes e mármores, panóplias de armas autênticas; uma severa biblioteca de madeira negra sabiamente abastecida,” se encontra diante de um “simples homem, modesto e pobre, entre móveis reles, de calças de brim, camisa de cetineta aberta no peito” (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 4–5) habitando um quarto de pensão. Anselmo declara seu sonho de viver da literatura e, diante da inocência do seu jovem interlocutor, Ruy Vaz responde: “Dize então, e dirás melhor e com mais acerto: vou começar a morrer” (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 13). A questão reaparece no capítulo seguinte, e desta vez é Neiva (Paula Ney) que ironiza o sonho de Anselmo:
— E tenciona viver das letras?—perguntou assombrado. […] —Pois meu amigo, aceite os meus pêsames. […] Cure-se! Não vá para um convento, vá para o hospício. […] Neste país viçoso a mania das letras é perigosa e fatal. Quem sabe sintaxe aqui é como quem tem lepra. Cure-se! Isto é um país de cretinos, de cretinos! (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 28).
O romance esboça, portanto, uma frustração: Anselmo sonha virar escritor e viver desta atividade, mas o meio no qual ele vive parece incapaz de corresponder às suas ambições.
Os escritores boêmios não eram os únicos a experimentar esse sentimento: é o caso de toda a Geração de 1870. Sob esta apelação são reunidos grupos bastante heterogêneos —liberais, republicanos, positivistas, federalistas etc.— cuja unidade se encontra, segundo Angela Alonso (Reference Alonso2017, 59–77), em uma oposição comum à “tradição imperial”, que havia sido construída sobre três pilares: o indianismo romântico, o liberalismo senhorial e o catolicismo hierárquico. Esses intelectuais tinham origens sociais diversas —entre eles encontramos tanto indivíduos oriundos de grupos favorecidos pela dinâmica econômica das últimas décadas do Império quanto de grupos decadentes—, mas todos viviam uma mesma “comunidade de experiência”: a marginalização frente à dominação saquarema, quer dizer, do Partido Conservador. Principal responsável pela construção da ordem política imperial (Needell Reference Needell2001), este partido tinha o controle da distribuição dos recursos políticos e do Estado, como os cargos mais prestigiosos na função pública, que eram distribuídos preferencialmente aos membros das famílias proprietárias dos campos de cana de açúcar de Pernambuco e da Bahia, e das plantações de café do Vale do Paraíba (região entre o sul da então província do Rio de Janeiro e nordeste de São Paulo), regiões mais pujantes economicamente no momento da Independência.
A ascensão de vários grupos contestatários, a partir dos anos 1870, foi possível graças a uma “estrutura de oportunidades políticas” que nasce do cruzamento da crise política com a modernização conservadora que teve lugar entre 1871 e 1875, anos do governo de José Maria da Silva Paranhos, o Visconde de Rio Branco. As reformas iniciadas pelo Visconde expressam a consciência de uma parte da elite imperial de que a Monarquia deveria reestruturar sua economia sobre bases não escravistas e abrir o sistema político para sobreviver. Alguns bons resultados foram obtidos: o ensino superior foi expandido; a urbanização acelerou; as comunicações no interior do país melhoraram; o comércio e as atividades urbanas se desenvolveram. Entretanto, a agenda de modernização conservadora não foi levada a cabo: o regime não criou novas formas de incorporação política para absorver os grupos sociais em expansão, as reformas eleitorais foram limitadas e a centralização política permaneceu inalterada. O resultado foi a coabitação de traços da ordem tradicional com inovações que provocarão sua queda por causa das numerosas decepções geradas: de um lado, as expectativas de ascensão social dos grupos emergentes não se concretizaram; de outro, o acesso às funções públicas ficou mais difícil para os grupos estacionários ou decadentes (Alonso Reference Alonso2017, 110–117). Surgiu, então, um “excedente” de homens de letras que, sem ter acesso às carreiras mais cobiçadas, encontram lugar nas funções privadas em expansão, como o ensino secundário e a imprensa (Alonso Reference Alonso2017, 152).
Alonso exclui de seu estudo as obras literárias ou de teoria literária, apesar da autora se dizer convencida de que o quadro analítico que ela desenvolve poderia igualmente ser aplicado à literatura (Alonso Reference Alonso2017, 56). De fato, são notáveis as semelhanças entre os literatos que estamos estudando e os intelectuais estudados pela socióloga.
Em primeiro lugar, os boêmios têm origens sociais e regionais bastante diversas, não podendo o grupo ser reduzido a uma classe social.Footnote 5 Entre os boêmios, são encontrados indivíduos provenientes de famílias provinciais decadentes (caso de Aluísio e Artur Azevedo); um filho de militar nascido na periferia do Império (Pardal Mallet); um oriundo da classe média provincial (Guimarães Passos); indivíduos sem nenhuma relação com a sociedade da corte, mas que são bem sucedidos nas instituições educacionais do Império (Coelho Neto, Alcindo Guanabara e Paula Ney); filhos de profissionais liberais (Olavo Bilac e Luís Murat); um militar (Urbano Duarte); e um membro de uma importante família do Vale do Paraíba (Raul Pompeia).
No entanto, essa heterogeneidade é contrabalanceada pela experiência de quase todos eles nas instituições educacionais do Império. Mais importante do que a educação recebida, é nesses estabelecimentos que eles se conhecem, participam de associações, travam relações com professores sem acesso à carreira política e entram em contato com outros grupos contestatários. A importância das faculdades se encontra, portanto, nos recursos que elas colocam à disposição dos jovens escritores e no fato que elas são microespaços públicos para grupos sem acesso aos canais de expressão política tradicional (Alonso Reference Alonso2017, 148–150).
Além disso —fato evidente, mas cuja observação é importante—, todos afluem ao Rio de Janeiro, que parece ser o único lugar onde um jovem intelectual pode construir uma carreira no mundo das letras. Vejamos, por exemplo, o diálogo entre Anselmo e Fortúnio (Guimarães Passos), em A Conquista. Este acaba de descobrir que sua amada, que ele havia deixado em Alagoas, vai se casar com um rival. Vendo o sofrimento de seu amigo, que lamenta ter deixado sua terra natal, Anselmo responde:
— Vieste atraído pela vida. Que diabo querias fazer em Maceió? […] Também eu tenho saudade do meu sertão, mas que poderia eu fazer se lá vivesse? Estava em plena natureza, nos campos gordos, vendo o gado e vendo as culturas, trabalhando como um campônio. […] Aqui não.
— Ora, aqui não! E que diabo fazemos nós aqui?
— Trabalhamos.
— Morremos de fome e de fadiga porque nem cama temos. […]
— Então não esperas vencer?
— Eu, não. Que público temos nós? Pensas que se prepara um povo em dez ou vinte anos? Qual! Havemos de viver sempre como vivemos. (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 188–189)
A cidade aparece como um ideal de vida, a única possível para um jovem que quer viver de sua pena. Mas falta algo: um público leitor. No entanto, Anselmo crê: é preciso lutar e criar seu público, que é, na verdade, o povo brasileiro. É a partir dessa constatação que é possível entender a militância política desses escritores. Ao mesmo tempo em que eles se encontram em uma situação de marginalização política, a via alternativa que eles escolhem, a literatura, não oferece possibilidade de ascensão social. A modernização do país aparece como única salvação. À ordem agrária, escravagista e monárquica que impede o desenvolvimento de suas carreiras, eles opõem a militância por uma ordem urbana e republicana.
A organização social escravista deixa pouco espaço de carreira às classes médias, que devem se submeter à uma relação clientelista com as elites agrárias e comerciais, seja por relações diretas, seja pelo Estado (Franco Reference Franco1969). Quase todas as alternativas de carreira fora da propriedade agrícola se encontram no serviço público, cujo acesso é dominado pelos saquaremas. O resultado é que os funcionários são, em certa medida, os clientes improdutivos da grande propriedade rural: como diz Joaquim Nabuco (apud Mello Reference Mello2002, 246), o Estado suga “o que resta à lavoura de lucro líquido. Essas sobras, ela as distribui pelo seu exército de funcionários, os quais por sua vez sustentam uma numerosa dependência de todas as classes.” Ele toma “os lucros da escravidão aos que produzem para distribuí-lo entre os que ela impede de produzir.” O resultado é, para Nabuco (apud Alonso Reference Alonso2017, 250), uma geração sem perspectiva, pois “muitas avenidas que poderiam oferecer um meio de vida a homens de talento […], como a literatura, a ciência, a imprensa, o magistério, não passam ainda de vielas.”
Como para os boêmios, vários estudiosos do pensamento brasileiro viram os intelectuais da geração de 1870 como importadores, ou mesmo imitadores, acríticos do pensamento europeu. É contra essa visão que Alonso (Reference Alonso2017, 208–227) se levanta. Para a socióloga, o elemento central para a compreensão da produção intelectual da época se encontra na política, visto que todas as carreiras intelectuais se concentram no Estado. Seria necessário pensar as teorias europeias como um repertório político-intelectual à disposição dos críticos do sistema imperial. Os elementos desse repertório seriam selecionados em função de situações concretas com o objetivo de definir estratégias de ação, que podem até mesmo deixar de lado a coerência teórica.
A geração de 1870 conjuga esses esquemas intelectuais com a observação da experiência social local e a experiência de seus contemporâneos em outros países. Dessa forma, os grupos contestatários desenvolvem uma reflexão sobre a realidade nacional que deriva de uma perspectiva comparativa. O objetivo era encontrar um esquema conceitual capaz de diferenciar o movimento da tradição imperial. Os grupos opositores se apropriam das teorias sociais de base científica e materialista em oposição ao romantismo e ao catolicismo imperial, que postulavam uma lei universal que organizaria as sociedades por etapas de civilização, e à representação saquarema da História nacional, tida como o desenvolvimento de uma essência dada na origem. Produzia-se, então, uma teoria da evolução política que permitiria pensar a conjuntura brasileira como um momento de crise do modelo de sociedade e do regime político (Alonso Reference Alonso2017, 303–314).
Voltando aos escritores boêmios, cuja ideia de modernidade é representada pela cidade moderna, não surpreendem as numerosas referências àquela que é a quintessência da modernidade urbana do século XIX: Paris. A capital francesa é o lugar onde o “talento” é valorizado. Em A Conquista, Coelho Neto coloca as seguintes palavras na boca de José do Patrocínio, que promete fazer fortuna com o jornal A Cidade do Rio e enviar seus colabores à Cidade Luz: “Ali poderiam vocês cultivar a grande Arte. Paris é uma cidade, não é esta choldra onde a gente, aos vinte anos, tem a cabeça branca e aos trinta é ruína” (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 240–241). Já o crítico Oscar Guanabarino, em seu comentário sobre a comédia A Fonte Castália (1904), de Artur Azevedo, lamenta a sorte do homem de talento no Brasil, cujas “glórias” não são acompanhadas de uma retribuição financeira razoável. Se o dramaturgo foi ovacionado, isto foi graças aos seus amigos e colegas de pena, que formaram uma plateia “esclarecida” para a estreia, mas insuficiente para manter a peça em cartaz. O destino da peça seria diferente se “em vez do seu aparecimento em nossos teatros, tivesse ela surgido em Paris […] então veríamos a sua expansão por todo o mundo, traduzido em várias línguas e a partitura retalhada em trechos soltos para piano ou para canto” (Guanabarino Reference Guanabarino2019, 255–256).
Paris é o local da suprema consagração, a capital da República Mundial das Letras, ponto a partir do qual todos os outros territórios medem sua distância estética em relação à “modernidade”. A imagem da capital francesa ganha ainda mais importância no contexto brasileiro, onde as reivindicações de ordem literária se misturam à contestação do regime e à propaganda republicana: Paris simboliza a Revolução, a derrubada de monarquia. Ela se transforma, assim, em uma cidade idealizada, ao mesmo tempo capital intelectual e lugar fundador da democracia política (Casanova Reference Casanova2008, 47–61).
Nós não estamos no registro de uma imitação simplória de uma elite francófila desconectada da realidade local. Trata-se da consciência que os homens de letras têm de sua própria situação: o que eles querem, é a conquista da modernidade literária, de um novo regime mediático e de trabalho que lhes dê condições de vida e um reconhecimento à altura do “talento” deles. O escritor brasileiro é um “boêmio à força”, sustentado por um “mísero emprego público”, que vive “chorando suas necessidades, alimentando-se mal, contraindo favores, enquanto não lhe chega o minguado subsídio com que vai pagar aos agiotas que o socorreram durante o mês” (Caminha Reference Caminha1895, 47–48).
A própria imagem do “boêmio” é uma identidade romântica tirada do imaginário parisiense e forjada pelas próprias memórias e autobiografias dessa geração. Coelho Neto, em A Conquista, narra o entusiasmo de Anselmo após o primeiro encontro com os escritores cariocas e seu ideal de sociabilidade literária, tirado das Scènes de la vie bohème, de Henry Murger:
Abrira-se lhe, enfim, a porta ebúrnea do ideal, ia entrar na ventura, na grande vida espiritual, entre artistas […] Sombras andavam-lhe em torno […] Bem os conhecia, eram eles: Rodolfe, Marcel, Coline, Schaunard, ouvia o riso de Mimi, a tosse de Francine, o alarido alegre do café Momus. (Coelho Neto Reference Coelho and Maximiano1985, 40).
A imagem do escritor boêmio é uma forma de reconhecimento mútuo e produz uma representação do homem de letras junto ao público, marcando uma diferenciação entre a classe letrada e o conjunto da sociedade (Mérian Reference Mérian1988, 446–461). Assim, esses escritores, marginalizados dentro da economia de favores imperial, vão se unir sob uma identidade literária moderna, tirada do imaginário parisiense, e propor uma nova modernidade social e política. A aceitação de Paris como modelo civilizacional é a forma pela qual os boêmios vão se colocar como vanguarda do progresso dentro do próprio espaço nacional, pensar a situação de homem de letras e imaginar possíveis caminhos de salvação profissional.
É óbvio que a dominação parisiense produz suas próprias formas de violência simbólica. No entanto, a missão que os escritores boêmios se colocam, dentro de suas estratégias de legitimação, é outra e passa pela adesão a um projeto de modernidade cosmopolita que viria a tirar o país de seu “atraso” (Pereira Reference Pereira2004). Para melhor explicar este ponto, é interessante observar o que se passa no campo musical.
A música a procura do seu público
O campo musical era fortemente polarizado ao redor do Imperial Conservatório de Música, fundado em 1848. Colocado sob proteção monárquica, era um órgão central na legitimação e na hierarquização do meio musical. Em troca, ele participaria do projeto civilizador imperial (Augusto Reference Augusto2010).
A situação começa a mudar nas últimas décadas do Império, com o aparecimento de um público urbano maior, capaz de sustentar um circuito econômico (Appleby Reference Appleby1989, 39–41). Surgem, então, novas formas de financiamento da atividade musical com o aparecimento de associações privadas —como os Concertos Patti e a Filarmônica Fluminense, na década de 1870— e clubes musicais —como o Clube Mozart (1868), o Clube Beethoven (1882), o Clube Schubert (1882) e o Clube Ricardo Wagner (1883)—. E a escolha de nomes de compositores germânicos para batizar esses clubes, todos muito seletivos na admissão de seus membros, não é um acaso: em um momento de emergência de novos grupos e de contestação do regime, a elite imperial era atraída por uma “aura de respeitabilidade” e uma “mística especial” —para utilizar os termos de Michael Broyles retomados por Cristina Magaldi (Reference Magaldi2004, 65–69)— associadas à música germânica, utilizada como um objeto de distinção.
Cria-se assim um circuito paralelo e relativamente autônomo, onde os músicos excluídos do Imperial Conservatório podem construir uma trajetória profissional alternativa. É o caso do cearense Alberto Nepomuceno, que chega ao Rio de Janeiro em 1885 e começa a se fazer conhecido do público carioca graças aos seus concertos no Clube Beethoven, onde ele será professor da academia de música. Após tentativas infrutíferas de obter uma bolsa da família imperial, ele consegue viajar a Itália graças ao apoio da família do escultor Henrique Bernardelli (Vidal Reference Vidal2011, 83).
A mudança de regime político é a oportunidade para os músicos excluídos da economia de favores imperial inverterem a ordem simbólica do campo musical fundando uma nova “república musical”, cujo centro seria o Instituto Nacional de Música, criado em substituição ao antigo conservatório (Pereira Reference Pereira2007). É nesse sentido que Oscar Guanabarino (Reference Guanabarino2019, 173) ironiza o republicanismo oportunista de Leopoldo Miguez, o primeiro diretor e o principal responsável pela organização da nova instituição:
Era José White professor da ex-princesa imperial, que em régio pagamento de proveitosas lições […] brindou o notável artista com um Stradivarius célebre, de custo de dez contos de réis. […].
O Sr. Leopoldo Miguez, sempre modesto, querendo desbancar o famoso artista, que dedicara uma composição à ex-soberana, escreveu uma esplêndida Sonata […] e dedicou a sua composição à ex-princesa imperial, indo ao palácio entregar o autógrafo.
[A Princesa] o recebeu friamente e mostrando ligar pouco interesse à peça e pouca importância ao autor. […]
O Sr. Leopoldo Miguez, tão modesto sempre, saiu do palácio […] e escreveu o Hino da República!
No novo contexto, a música alemã —que chega no Brasil a partir de uma releitura francesa (Volpe Reference Volpe2001, 78)—, sob os auspícios da “música do futuro” de Wagner —tradução da ideia de “musique de l’avenir”, que pautou o debate sobre a música wagneriana em Paris nos anos 1860 (Willson Reference Willson2014)—, participará da legitimação do novo regime como sinônimo de progresso, se integrando na modernidade cosmopolita republicana (Larsen Reference Larsen2018). A música italiana, por outro lado, utilizada como um instrumento civilizador pela Monarquia (Budasz Reference Budasz2010), será associada ao passado imperial como símbolo de atraso. Por isso Carlos Gomes, outrora glória nacional, terminará seus dias no longínquo Pará, como diretor do Conservatório de Belém.
Da mesma forma que a literatura do dito “pré-modernismo” brasileiro, a imagem que ficará para a posteridade desses músicos da primeira fase do Instituto Nacional de Música será pautada pelo discurso nacionalista do modernismo. No entanto, é o modernista Mário de Andrade (Reference Andrade1962, 13–16) que critica uma tendência dos “modernos” de expulsar “da jangada nacional não só as obras e autores passados como até os que atualmente empregam a temática brasileira numa orquestra europeia.” O autor de Ensaios sobre a música brasileira, publicados em 1928, considera que esses modernos não estão verdadeiramente preocupados com essa “coisa séria que é a Música Brasileira,” mas, ao contrário, têm uma prática diletante e individualista sem nenhuma importância nacional, pois, como os estrangeiros, o que eles querem é o exotismo, e não “a expressão natural e necessária de uma nacionalidade.” O indianismo, principalmente, é uma forma de mistificação, pois “o homem da nação Brasil hoje, está mais afastado do ameríndio do que do japonês e do húngaro. O elemento ameríndio no populário brasileiro está psicologicamente assimilado e praticamente já é quase nulo.”Footnote 6
O autor afirma que, se até então “a música artística brasileira viveu divorciada da nossa entidade racial,” o problema se encontra no fato de que “a nação brasileira é anterior à nossa raça.” Consequentemente, “os artistas duma raça indecisa se tornaram indecisos que nem ela” (Andrade Reference Andrade1962, 13). Para Mário de Andrade, em Evolução Social da Música no Brasil (1939), a música brasileira vive um “drama particular”, comum a todas as músicas americanas:
Ela não teve essa felicidade que tiveram as mais antigas escolas musicais europeias, […] de um desenvolvimento por assim dizer inconsciente, ou pelo menos, mais livre de preocupações quanto à sua afirmação nacional e social. Assim, se por um lado apresenta manifestações evolutivas idênticas às da música dos países europeus, e por esta pode ser compreendida e explicada, em vários casos teve que forçar a sua marcha para se identificar ao movimento musical do mundo ou se dar significação mais funcional. (Andrade Reference Andrade1965, 15).
O autor imagina três períodos na evolução da música nacional. O primeiro corresponde à época colonial, quando a música religiosa é introduzida no Brasil pelos jesuítas para a catequese. Esta música importada absorve, no entanto, elementos da terra e se transforma em um elemento de socialização, que “exerce uma função religadora, correspondente à coletividade em que está se realizando” (Andrade Reference Andrade1965, 24). A segunda fase começa com a fixação das primeiras cidades e se reforça após a “falsa independência.” É quando o “internacionalismo musical” domina. A música, então, assume um caráter ornamental. Enfim, a Proclamação da República deveria dar um caráter mais americano à música brasileira, não sendo mais o país uma “excrecência monárquica” no continente. Mas não foi este o caso. O Instituto Nacional de Música teve o mérito de atualizar a técnica de composição, mas não livrou o Brasil da tutela do internacionalismo europeu (Andrade Reference Andrade1958, 158–159).
O interessante desse esboço de história da música brasileira é que Mário de Andrade coloca a música nacional como um produto de importação cuja “função” é representar a comunidade onde ela está inserida. Há uma tensão entre dois polos: de um lado, a necessidade de expressar a identidade da comunidade, o que dá sentido à prática musical, mas significa uma submissão a uma “missão” não artística; de outro, a origem europeia e a necessidade de estar em dia com a música internacional, elemento necessário para a legitimação de um espaço profundamente ligado aos circuitos de circulação internacional.
A arte brasileira: Entre o nacional e o cosmopolita
A literatura nacional também, em seus princípios, se enraíza na questão nacional. O patrimônio literário se forma ao mesmo tempo que a nação e a ela se liga por um elemento comum: a língua “nacional,” ao mesmo tempo objeto apropriado pela política como elemento fundador do Estado e material literário. Nos seus períodos de formação, a literatura nacional tira a sua legitimidade da política, e as duas esferas se nobilitam mutuamente (Casanova Reference Casanova2008, 62). É por isso que o projeto fundador das Letras Pátrias coloca em seu centro o patriotismo (Rozeaux Reference Rozeaux2012, 28). A literatura pouco a pouco se liberta das instâncias políticas pela acumulação de recursos literários específicos —técnicas, formas literárias, soluções narrativas e formais etc.— que produzem uma história específica e relativamente distinta da história nacional. É assim que a literatura pode proclamar sua liberdade frente ao poder político dentro de nações definidas politicamente (Casanova Reference Casanova2008, 66).
No entanto, o Brasil vive o drama de ser uma “pequena literatura” —quer dizer, um espaço literário relativamente pouco dotado simbolicamente e dominado na República Mundial das Letras— e, portanto, para alcançar sua autonomia e proclamar sua liberdade estética, ela precisa se libertar não somente da tutela da política, mas também da dominação exercida pelos centros literários mundiais, representados tanto pela antiga metrópole, de onde vem a língua, como pelas capitais culturais mundiais.Footnote 7 Assim, dois tipos de estratégias principais se colocam aos “jogadores” dentro do espaço literário nacional. De um lado, a assimilação ao espaço literário dominante, que tem como consequência a “traição” do pertencimento comunitário. De outro, a afirmação da diferença a partir de uma reivindicação nacional, cujo resultado quase certo é a aceitação de uma via estreita como escritor “nacional” (Casanova Reference Casanova2008, 258–259).
Obviamente, essas duas estratégias não são necessariamente irreconciliáveis. Cosmopolitismo e nacionalismo são dois polos entre os quais músicos e literatos devem navegar dentro das disputas internas de seus respectivos campos. E é se apoiando mais em um ou mais em outro polo que eles realizam a autonomização do campo nacional. Autores e músicos dos anos 1880, excluídos do mecenato imperial, se apoiaram em um circuito econômico balbuciante para criar um polo relativamente autônomo frente ao poder político, aderindo a uma perspectiva cosmopolita da arte. No entanto, uma plena independência ainda não é possível, dada a estreiteza do público consumidor. Consequentemente, oposição estética e oposição política caminham juntas. Com a República, o Instituto Nacional de Música será o centro da nova República Musical, como legítimo representante da modernidade do novo regime. Ao mesmo tempo, após o trauma dos primeiros anos do regime republicano, quando divergências políticas causam a explosão da unidade do mundo literário e vários literatos são perseguidos durante o governo de Floriano Peixoto (1891–1895) (Silva Reference Silva2001), os escritores se reunirão na “torre de marfim”, para usar a expressão de Machado de Assis, que seria a ABL, onde eles cultivarão uma nova representação da figura do homem de letras, voltada para as atividades do espírito e pretensamente longe das disputas políticas (El Far Reference El Far2000; Rodrigues Reference Rodrigues2001) —o que era constantemente negado tanto pela atividade políticas e a participação em eventos públicos de seus membros, como pelas interferência do poder público nos assuntos internos da ABL—, criando uma literatura mundana, ao gosto da burguesia urbana, definida como o “sorriso da sociedade” por Afrânio Peixoto (Silva Reference Silva2013).
Com os modernistas, o pêndulo muda de lado: trata-se agora da afirmação do nacional como uma nova etapa da afirmação da liberdade artística no Brasil. É o que Mário de Andrade chama de “fase nacionalista” da evolução da música brasileira:
O compositor brasileiro da atualidade é um sacrificado […] ainda não é um ser livre, ainda não é um ser “estético”, esquecido em consciência de seus deveres e obrigações. Ele tem uma tarefa a realizar, um destino prefixado a cumprir, e se serve obrigadamente e não já livre e espontaneamente, de elementos que o levem ao cumprimento do seu desígnio pragmático. (Andrade Reference Andrade1965, 33)
É somente após a realização desta fase que a música poderá ser “livremente estética”, chegando então à fase que o autor chama de “Cultural” (Andrade Reference Andrade1965, 34).
Quer dizer, a música —e, acrescentamos, a literatura— brasileira tem vocação para ser livre e universal. As duas artes proclamarão sua liberdade e gozarão da mesma estima dos grandes centros culturais mundiais. No entanto, é necessário antes realizar a etapa “Nacionalista” da evolução artística brasileira. Trata-se de romper com a dominação francesa e portuguesa para que o espaço nacional alcance a autonomia no interior da República Mundial das Letras, o que faz o projeto modernista ser, ao mesmo tempo, político e artístico. Para ser livre, é preciso “nacionalizar” a língua e acumular recursos propriamente nacionais, sem cair no exotismo, expressão da desigualdade entre colonizador e colonizado. É a razão pela qual Mário de Andrade realiza um verdadeiro trabalho etnográfico, com a colheita e reunião de contos, mitos, lendas e modos de falar do povo brasileiro. Trata-se de acumular recursos não específicos que são em seguida transformados em recursos literários que fundarão a emancipação artística nacional (Casanova Reference Casanova2008, 399–414). A consequência é uma volta da submissão à questão nacional e a aceitação de um papel como artista “nacional”. Não é por acaso que Macunaíma, a obra mais programática de Mário de Andrade, teve suas primeiras traduções publicadas somente nos anos 1970, enquanto Amar, verbo intransitivo, foi publicada em inglês já em 1933 (Okawati Reference Okawati2022).
Entretanto, o modernismo só foi possível porque nessa época se afirma uma elite urbana suficientemente rica e consciente capaz de bancar a aventura vanguardista, seja porque muitos dos artistas modernistas eram eles mesmos parte dessa elite, seja como financiadora de empreitadas diversas. Além disso, uma parte dessa elite, principalmente em São Paulo, que ascendia no plano político e econômico nacional, estava disposta a bancar novas formulações identitárias capazes de legitimar sua posição. No entanto, a opção “nacionalista” não significava necessariamente uma ruptura radical com o internacionalismo da Primeira República.
O caso de Villa-Lobos é interessante. Este carioca, filho de funcionário público e órfão de pai desde os 13 anos, que não fez o essencial de sua educação no Instituto Nacional de Música, consegue realizar suas duas primeiras viagens a Paris, em 1923 e entre 1927 e 1930, graças ao patrocínio de nomes importantes das elites paulista e carioca, como Antonio e Paulo Prado, Olívia Penteado e Carlos e Arnaldo Guinle (Fléchet Reference Fléchet2004, 34–37). É somente após a sua primeira estadia em Paris, quando sua música, ainda fortemente influenciada por Debussy —que já não era o que havia de mais moderno na capital francesa—, provocou certa decepção no público parisiense, que não encontrou o “exotismo” esperado de um compositor latino-americano, que Villa-Lobos se preocupa em criar uma estética nacionalista (Guérios Reference Guérios2003).
O exemplo de Villa-Lobos mostra como contexto internacional e evolução socioeconômica do Brasil interagem para moldar os campos artísticos. O desenvolvimento da economia nacional permite a criação de uma nova posição que se libera relativamente da dominação das instâncias estatais sobre a arte. Para isso, os atores que realizam essa etapa se apoiam em um projeto modernizador fortemente cosmopolita, em oposição à ideologia imperial. Com o modernismo, trata-se de um retorno ao nacionalismo sem que isso represente um retorno à submissão, em um primeiro momento, a um projeto nacional que parte do Estado. Durante o romantismo, a busca era pela diferenciação e particularização temática de uma literatura que se insere no projeto nacional imperial, que afirma, no entanto, a participação do país na civilização ocidental (Cândido, Reference Cândido2000). Com o modernismo, a experimentação estética é colocada a serviço de um projeto de libertação das artes brasileiras da dominação internacional —“A nossa independência ainda não foi proclamada”, diz o Manifesto Antropófago, “é preciso expulsar o espírito bragantino” (Revista de Antropofagia, nº 1, 1928, 7)— e da acumulação de recursos artísticos nacionais que elevarão o espaço artístico nacional ao nível dos grandes centros internacionais, desejo expresso na ideia de criação de uma “poesia de exportação” do Manifesto da Poesia Pau Brasil.
Quer dizer, uma vez realizada, relativamente, a autonomia literária frente ao Estado, agora é o momento de realizar esta outra autonomia, a liberação do espaço literário e artístico nacional no plano mundial. O centro da antropofagia era “a ideia de ‘devoração cultural’ das técnicas e informações dos países superdesenvolvidos, para reelaborá-las com autonomia, convertendo-as em ‘produto de exportação’” (Campos Reference Campos1978, 124, grifo nosso). E é assim, nesse jogo entre adesão e repulsa que se realiza a autonomia em um espaço excêntrico.
O que estamos propondo não é uma história teleológica, como se o fim natural das artes fosse chegar a esta autonomia. Em cada momento histórico, os atores que querem se afirmar no espaço literário têm a sua disposição um conjunto de posições legítimas que eles podem tomar e que constituem estratégias válidas na construção de suas carreiras. Essas posições evoluem em função tanto do desenvolvimento histórico da sociedade brasileira, como das mudanças estruturais da República Mundial das Letras, o que cria alternativas para jovens mais ou menos distantes das posições dominantes que procuram um lugar no interior do campo artístico.
Sobre este último ponto, a Primeira Guerra Mundial é um evento fundamental. Olivier Compagnon (Reference Compagnon2013) mostrou que o conflito provocou uma desilusão das elites latino-americanas com a civilização europeia, o que incentiva a procura de novos modelos civilizacionais para seus países. No entanto, também na Europa o período entreguerras é marcado por um enorme interesse pelas expressões artísticas extra-europeias. É neste momento que as músicas negras dos Estados Unidos desembarcam no Velho Continente;Footnote 8 que surrealistas e dadaístas, chocados com a violência da guerra e assombrados pela desagregação da civilização ocidental, encontram nas artes ditas primitivas uma inspiração para a renovação cultural do Ocidente (Shelton Reference Shelton1984); e são também as próprias potências europeias que procuram enaltecer a diversidade de seus impérios nas exposições coloniais, transformando a diversidade cultural em um valor a ser celebrado (De L’estoile Reference De L’estoile2007). Tudo isso produz uma nova legitimidade para expressões artísticas outrora menosprezadas, que passam a gozar de um relativo interesse nos países europeus.Footnote 9 A viagem dos Oito Batutas a Paris (Shaw Reference Shaw2021) é exemplar do interesse crescente do público parisiense pela música brasileira (Fléchet Reference Fléchet2013).
Quer dizer, essa tomada de posição nacionalista e o sucesso do projeto modernista não podem ser entendidos sem levar em consideração o conjunto das posições naquilo que, para a literatura, pode ser chamado de a República Mundial das Letras.Footnote 10 Afinal, nós sabemos que foi a estadia em Paris que fez muitos modernistas “descobrirem” o Brasil (Simioni Reference Simioni2013). Oswald de Andrade afirma, em uma conferência na Sorbonne em 1923, que “jamais foi sentir-se tão bem, no ambiente de Paris, a presença sugestiva do tambor negro e do canto índio. Essas forças étnicas estão em plena modernidade.” Também Tarsila do Amaral, neste mesmo ano, afirma em uma carta de Paris que, durante sua próxima estadia no Brasil, passaria alguns dias na Bahia, “onde há documentos preciosos de arte brasileira,” para “trazer para cá muito assunto brasileiro” (Amaral Reference Amaral1992, 71–72).
Conclusão
Em carta a Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade lamenta o “dilema” do escritor brasileiro, entre nacionalismo e universalismo.Footnote 11 Drummond reconhece o “defeito” de não ser “ainda suficientemente brasileiro”:
[…] nasci em Minas, quando deveria nascer […] em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou um exilado. […] O Brasil não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte […]. Entretanto, como não sou nem melhor nem pior do que os meus semelhantes, eu me interesso pelo Brasil. Daí o aplaudir com a maior sinceridade do mundo a feição que tomou o movimento modernista nacional. (Santiago Reference Santiago2002, 56).
O autor cita outras razões para o seu “exílio”, particularmente a educação universalista recebida. Mas Mário de Andrade aponta a falsa oposição nas palavras do amigo:
Primeiro não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil para brasileiros—ou regionalismo exótico. Nacionalismo quer simplesmente dizer: ser nacional. O que mais simplesmente significa: Ser. Ninguém que seja verdadeiramente, isto é, viva, se relacione com o seu passado, com as suas necessidades imediatas práticas e espirituais, se relacione com o meio e com a terra, com a família etc., ninguém que seja verdadeiramente deixará de ser nacional. O despaisamento provocado pela educação em livros estrangeiros, contaminação de costumes estrangeiros por causa da ingênita macaqueação que existe sempre nos seres primitivos, ainda, por causa da leitura demasiadamente pormenorizada não das obras-primas universais dum outro povo, mas das suas obras menores, particulares, nacionais, esse despaisamento é mais ou menos fatal, não há dúvida, num país primitivo e de pequena tradição, como o nosso. Pois é preciso desprimitivar o país, acentuar a tradição, prolongá-la, engrandecê-la. (Santiago Reference Santiago2002, 70).
Esta troca de correspondências mostra, em primeiro lugar, a situação trágica do escritor excêntrico, ocupando um lugar em uma “pequena literatura,” um espaço de “pequena tradição,” nas palavras de Mário de Andrade. Fazendo parte de um espaço mundial que tem como fundamento a universalidade da obra de arte, o escritor excêntrico logo percebe que seu pertencimento a certo espaço linguístico e nacional coloca limites para o desenvolvimento de sua carreira. A tentação da “traição” nacional é grande. No entanto, a assimilação ao “centro” não tem nada de evidente: as diferenças linguísticas, as redes de sociabilidade, a educação recebida, o capital cultural… Tudo parece jogar contra as possibilidades de assimilação, sobretudo quando o escritor vem de um espaço linguístico diferente daquele das literaturas dominantes. No final, o “despaisamento” pode mesmo ser fatal, pois o “assimilado” muito provavelmente terá uma posição secundária no espaço literário do dominador. No final, o próprio Drummond parece aceitar, resignado, seu pertencimento à literatura brasileira e aplaude as ações de “seus semelhantes.”
Sobretudo, Mário é extremamente lúcido ao afirmar que toda literatura é nacional, no sentido que toda obra é uma tomada de posição em relação a uma tradição, dentro de um espaço que se insere dentro de uma determinada sociedade. Para retomar a discussão sobre a música, esta, mesmo quando chegar à fase “Cultural” e for “livremente estética,” será “não mais nacionalista, mas simplesmente nacional, no sentido em que são nacionais um gigante como Monteverdi e um molusco como Leoncavallo” (Andrade Reference Andrade1965, 34). O fato é que, assim com a música, a literatura nacional é uma obra coletiva, composta por artistas maiores e menores. E os artistas brasileiros estão plenamente conscientes deste fato e, desde o século XIX, trabalham coletivamente na construção deste “grande monumento nacional” (Rozeaux Reference Rozeaux2012) que é a literatura brasileira.
Essa perspectiva nos ajuda a desmistificar algumas tomadas de posição tidas como revolucionárias. O dilema entre nacionalismo e cosmopolitismo, assim com as invenções e as escolhas dos atores, aparecem então como um conjunto de posições definidas umas em relação às outras, quer dizer, inseparáveis umas das outras. Isso permite pensar a emergência do espaço literário nacional livre das mitologias criadas pela história literária e fazer uma melhor apreciação das realizações dos personagens expulsos da “jangada” nacional, ou aos quais foi assignado um papel secundário.